A irritante geometria, as lentes de um telescópio, as microcirurgias e também uma audaciosa apresentação do ballet Bolshoi têm uma coisa em comum: a precisão. Margem de erro não é opção em certos cenários. Um destes está circunscrito à um prato de porcelana e uma série de etapas minuciosas de preparação: a arte culinária. Mas nem tudo precisa soar tão rígido quando se trata de comida e Tran Anh Hang sabe muito bem disso.
Hang é um diretor nascido no Vietnã, mas com alma francesa. Ao menos quando se trata de sua relação com a comida. Seu recente trabalho “O Sabor da Vida” é uma clara reverência à culinária francesa, retratando seus métodos, peculiaridades, ingredientes e sua presença na vida das pessoas. Ele não esconde que a ideia do projeto nasceu com sua vontade de realizar um filme sobre arte. E como pode-se perceber, Hang escolheu a arte culinária. Neste “inception” de uma arte dentro da outra, seria indispensável que a primeira camada (o filme) tivesse os requisitos fundamentais para ser assimilada como tal, e no meio dos vários ingredientes que compõe a sétima arte, Hang consegue acertar nas medidas e propoções, tomando decisões precisas em sua receita finalizada com toques de sensualidade (termo usado por ele próprio) e notas sensoriais.
Por mais brega que pareça comprar um filme a um prato de restaurante cinco estrelas, a analogia funciona bem neste caso já que se trata de um projeto que se entrega à culinária sem qualquer medo e se sustenta em seus processos, ritmos, sons e texturas. Ao contrário de cozinhas que simulam campos de batalha, como visto em vários formatos audiovisuais, como no reality “Masterchef”, no longa “Fome de Sucesso” (2023), ou na série “The Bear” (2022); “O Sabor da Vida” está mais preocupado em degustar calmamente a arte por trás da cozinha, camada por camada, e apreciar os sons e texturas que ficam evidentes nas cenas criadas apenas com som ambiente. A sincronia precisa entre os personagens e as várias etapas de preparação dos pratos não passa despercebido em sequências que não demandam gritaria ou ambientes tóxicos para envolver o público. Não à toa, Hang levou o troféu de melhor direção no Festival de Cannes após sua condução neste trabalho.
Como acompanhamento à toda essa exuberância culinária, o filme narra a história da talentosa cozinheira Eugenie (Juliette Binoche) e sua relação com o homem para quem trabalha há cerca de duas décadas: Dodin (Benoît Magimel), descrito como um “Napoleão das artes culinárias” por sua dedicação em estabelecer e catalogar processos culinários, algo similar ao feito Auguste Escoffier em 1903. A diferença entre eles é que o segundo se trata de uma pessoa real. No caso de Escoffier, seu trabalho renovou e estabeleceu métodos para a culinária francesa, resultando na Cozinha Francesa Moderna conhecida hoje. Já no caso da ficção, para além da relação profissional, acompanhamos o afeto presente entre Eugenie e Dodin que cresceu com o passar dos anos em que puderam desfrutar daquilo que mais amavam: cozinhar. E não atoa, boa parte das demonstrações de amor vistas entre os personagens giram em torno da cozinha. Apesar de já terem sido um casal na vida real anos atrás, a última vez em que Binoche e Magimel atuaram juntos aconteceu há mais de duas décadas, em 1999. O que não impediu que suas performances criassem uma perfeita combinação, ou para não perder a referência culinária: um par perfeito.
Por mais que Tran Anh Hang tenha conduzido as cenas com maestria, a precisão necessária para as sequências só poderia ser alcançada com o auxílio de alguém cuja arte culinária fosse inerente à sua existência. Por isso, o chef de cozinha Pierre Gagnaire, que coleciona estrelas Michelin, tal qual Meryl Streep tem indicações ao Oscar, atua como consultor culinário e ainda faz uma ponta na figuração do filme. Mesmo sendo quase “invisível”, é perceptível a presença de Gagnaire por trás dos movimentos sincronizados nas preparações realizadas por Eugenie e Dodin em sua cozinha ambientada no ano de 1885, um elemento que também se destaca na produção, uma vez que não é muito comum vivenciarmos processos culinários elaborados em épocas que fujam da contemporaneidade.
“O Sabor da vida” também é temperado com uma série de pratos tipicamente franceses e salpicado com histórias sobre eles. Tudo exposto de forma pouco natural durante as refeições realizadas por Dodin para seus amigos. Tran Anh Hang, em entrevistas realizadas sobre o filme, explicou que na França é comum ocorrem conversas sobre comida e cultura durante as refeições, o que explica a presença de momentos expositivos de história culinária que parecem forçados, mas incapazes de ofuscar o restante. O motivo disso é que nem tudo é explicado, como no caso do “Pot-Au-Feu”, título original do longa (que sabiamente foi trocado) e de um prato escolhido por Dodin como o principal a ser servido à um príncipe. Trata-se de um cozido com carne e legumes, tido como “um prato popular”, que poderia ser visto como inadequado para a situação. Acontece que apesar de não haver nenhuma explicação para o publico não-francês do que o prato se trata, é possível apreender o contexto da situação com facilidade. Logo, os momentos de aula de história não buscam explicar o que está sendo retratado, mas escolhe sabiamente por destacar determinados pratos diante de tudo o que está sendo exposto.
Apesar de “O Sabor da Vida” não ter marcado sua presença no Oscar mesmo sendo o representante frances para melhor filme internacional, sua essência sensorial e leve cumprem seu propósito eficientemente e também, como um relógio suíço, tem a precisão a seu favor. Sem um enredo mirabolante ou uma série de plots twists, a receita deste filme nos lembra da beleza que existe na arte culinária e nos detalhes que vivem em torno dela. Um longa para ser degustado como um sommelier aprecia um bom vinho, sem a ansiedade de uma criança aguardando a sobremesa.
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