Quem acompanha meus textos aqui na GlowPop ou no meu Letterboxd/Instagram, deve saber como eu fico cada vez mais com preguiça das cinebiografias (ou biopics) desde o péssimo Bohemian Rhapsody. O que o filme sobre Freddie Mercury me fez perceber é como esse tipo de obra, especialmente quando centrado em figuras da música, se apoiam na obra de seus biografados para alimentar o afeto dos fãs enquanto escolhe uma linguagem de encenação barata, preguiçosa e apática para retratar a vida dessas personalidades. Gosto de apelidar esse processo negligente de “Wikipédia filmada”, na qual cada cena parece a encenação básica de um parágrafo da enciclopédia livre.
Ao ir para a cabine de Saudosa Maloca, novo filme de Pedro Serrano inspirado na vida e obra do sambista Adoniran Barbosa, fui atingido pelo receio de estar caminhando o mesmo trajeto que me levou a assistir tragédias como Mamonas Assassinas ou Elis. Porém, em poucos minutos de projeção, já havia ficado clara a abordagem que Serrano usaria para fugir dessa armadilha fácil da produtificação cinematográfica: transformar a vida de Adoniran - e de seus dois companheiros trambiqueiros Joca e Mato Grosso - em uma espécie de comédia de costumes genuinamente brasileira. Em uma São Paulo já tomada pela urbanização moderna, um velho e reconhecido Adoniran cria amizade com o garçom Cícero, contando suas peripécias com Joca e Mato Grosso na época em que viviam desempregados em uma maloca e bebendo fiado no botequim que era constantemente agraciado pelo samba promovido pelo trio.
Usando Adoniran como líder de um trio cômico que se assemelha bastante a personagens criados por Ariano Suassuna na peça O Auto da Compadecida, o diretor compõe momentos não apenas hilários dentro da dinâmica do grupo como também vários comentários sociais sagazes mas também despretensiosos, que não desejam puxar a atenção para além de uma simples observação. O foco de Saudosa Maloca não é tecer comentários incisivos sobre a sociedade brasileira ou o conflito de classes, mas sim elaborar uma relação terna entre os personagens que populam a vizinhança da maloca e criar um sentimento saudosista (como diz o título) a partir da visão de mundo do protagonista na São Paulo modernizada, fugindo de qualquer pensamento conservador que poderia surgir a partir daí. Na verdade, muito pelo contrário, o samba aqui é encenado como força motriz das classes mais baixas e é muito elegante a forma como ele discute o sucateamento do gênero musical popular pelas rádios locais, em prol da música elitista como a bossa nova, o jazz, entre outros.
Portanto, mesmo populado de cenários dilapidados, sujos ou abandonados que ainda assim servem de residência para aqueles personagens, o filme de Pedro Serrano ainda consegue dar luz à beleza da rotina amigável e do otimismo do trio central - e de personagens complementares como a sonhadora garçonete vivida por Leilah Moreno ou o melancólico apaixonado encarnado por Izak Dahora. Não é coincidência, por exemplo, Joca e Mato Grosso (brilhantemente interpretados por Gustavo Machado e Gero Camilo, respectivamente) reencenarem a icônica - para não dizer LENDÁRIA - cena em que Charlie Chaplin usa dois pãezinhos e dois garfos para simular um “mini-sapateado” na obra-prima Em Busca do Ouro de 1925. Seus personagens demonstram a mesma esperança do Vagabundo naquele filme mudo, mesmo contra todas as probabilidades sociais.
Por isso, não deixa de ser comovente que o garçom Cícero (Sidney Santiago) apresente dúvidas quanto a real existência dos dois companheiros das histórias de Adoniran que, diferente de seu eu passado, é vivido por Paulo Miklos em sua velhice como um homem que, mesmo ainda enxergando beleza no mundo, não esconde certa melancolia ao ver aquela sua realidade saudosa se desfazendo. Ao apontar que um sambinha de rua não poderia ocorrer porque seria ofuscado pelo som das obras ao redor, vemos um homem que sente falta da simplicidade de sua vida anterior, quando não estava cercado de tamanha selva de pedra. E talvez seja aí que mora a genialidade da atuação de Miklos: transformar Adoniran, o “biografado”, num genuíno personagem fascinante em suas contradições, em suas memórias, mesmo mantendo uma habitual ternura.
Saudosa Maloca é uma deliciosa surpresa no cenário atual de cinebiografias, tanto brasileiras quanto hollywoodianas. Na verdade, nem sei se posso considerá-lo como uma, já que seu realizador parece satisfeito ao encará-la como uma comédia que extrai otimismo das mazelas sociais a partir de um refúgio artístico como o samba, e que demonstra melancolia ao encarar a modernização acelerada do mundo sem, com isso, apelar para uma visão conservadora e reducionista. Como é bom ser brasileiro!
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